Entrevista


“Infelizmente, por questões socioculturais ainda tem um tabu grande”, diz árbitra sergipana sobre presença feminina no futebol


Publicado 23 de agosto de 2020 às 09:00     Por Roberta Cesar     Foto Arquivo Pessoal / Emanuel Richa

Em um mundo que o futebol é dominado por homens, a única árbitra sergipana que integra o quadro Internacional da Federação Internacional de Futebol (FIFA), Thayslane de Melo Costa, relatou ao AjuNews as barreiras que enfrenta para construir uma carreira de sucesso em meio às desigualdades e preconceitos. A primeira mulher sergipana a entrar para o quadro de arbitragem da entidade afirma que enfrenta as barreiras desenvolvendo cada vez mais sua capacidade profissional.

“Infelizmente, por questões socioculturais ainda tem um tabu muito grande, então, essas barreiras a gente tenta minimizar diariamente. Infelizmente, a gente tem que também lidar com essa situação fisiológica, a mulher tem uma tendência fisiológica de ter alguns entraves hormonais. O que seriam esses entraves hormonais? O ganho de força, velocidade, potência, que o homem tem uma diferenciação por conta da produção de testosterona, mas que a gente tem buscado cada vez mais alcançar os índices masculinos”, afirma.

À reportagem, a profissional relatou que precisa se impor mais dentro de campo por ser mulher, e sente que os jogadores a respeitam. “Realmente, a liderança dentro do campo de jogo requer de nós mulheres árbitras uma postura mais firme. A gente também tem um lado positivo, os homens, jogadores no contexto geral, eles respeitam muito as mulheres, a tomada de decisão, acho que também essa questão de imposição. Você se impor enquanto líder, enquanto árbitra e também ter um critério nas tomadas de decisões é fundamental para que se consolide a presença de uma árbitra na tomada da decisão”, disse.

Na oportunidade, a árbitra também falou sobre as dificuldades e as inspirações na arbitragem feminina, além de contar sobre o retorno do futebol em meio a pandemia.

Confira a entrevista com a árbitra Thayslane de Melo completa:
AjuNews: Em termos de arbitragem sergipana, você é considerada uma das melhores do estado. Recentemente, apitou o jogo de retomada da copa do nordeste e uma das finais. Como está sendo este momento para você? Foi difícil construir uma carreira com tanto destaque?
Thayslane de Melo: Eu faço parte do quadro internacional desde o ano passado. A comissão vem acreditando muito no trabalho que venho desenvolvendo juntamente com meus colegas árbitros. No ano passado e neste ano, realmente, eu tive muitas oportunidades para participar de competições masculinas. A gente retornou trabalhando no primeiro jogo depois da pandemia pela CBF [Confederação Brasileira de Futebol], foi o jogo entre Fortaleza e o América do Rio Grande do Norte, e daí a gente teve a oportunidade agora de trabalhar no Campeonato Brasileiro Série C. Tive a oportunidade de ir até Minas Gerais, Varginha, para fazer a primeira rodada, entre o Boa Esporte e Volta Redonda. A gente não para, é preparação física, treinamento técnico, fortalecimento do pilar mental, desenvolvimento do pilar social, que somos pessoas públicas, temos que agir como tal e está sendo um momento muito bacana para mim, porque realmente são dias de muito sacrifício, situações muito difíceis mas que a gente tem superado e tem tido um retorno dentro do campo de jogo. Essas oportunidades vêm sendo feitas não só pela comissão estadual. Neste ano, tive a oportunidade de apitar o clássico maior, na primeira rodada do Campeonato Sergipano e isso tem me ajudado bastante porque tem me dado sequência de jogos muito importante e isso tem feito com que demonstre que nós somos capazes e isso tem tido um efeito muito bacana para mim porque eu tenho me doado ainda mais e realmente a gente tem essa entrega para a arbitragem e para o futebol e o retorno está sendo bastante positivo. O início da carreira não foi diferente dos demais, ao finalizar o curso a gente vai para as categorias de base para poder ter o primeiro contato com a arbitragem, a gente não sabe ao certo se vai ser árbitro assistente, se vai ser árbitro central, mas ao longo do curso a gente tem uma tendência a ter uma aptidão para a função e em meu caso foi para árbitra central. Desde então me apaixonei pela função e exerço até hoje. Não é fácil para ninguém, tampouco para os meninos e muito menos ainda para as meninas, então a gente tem que persistir bastante, tendo um bom rendimento nas partidas e, consequentemente, a gente começa a ter uma visibilidade, ter uma preparação física para atender aos jogos masculinos e acompanhar toda essa dinâmica do futebol moderno.

AjuNews: Como você lida com o fato da sua profissão ser historicamente dominada por homens? Já houve casos de preconceito ou assédio durante esse tempo atuando como árbitra?
Thayslane de Melo: Realmente, a gente tem ainda uma predominância muito grande dos homens no futebol, na modalidade em si de maneira geral. Na arbitragem não é diferente, mas a ascensão da arbitragem feminina, principalmente, no cenário atual, tem sido muito bacana. A gente tem recebido muitas oportunidades não só da federação estadual, mas também da CBF que tem investido muito na arbitragem feminina num contexto geral. E, a gente tem recebido essas oportunidades, temos correspondido, e isso tem tido um diferencial bacana, principalmente, porque a gente enaltece as pioneiras da arbitragem como a Léa Campos, Ana Paula de Oliveira,  Silvia Regina, Antônia Regina, são mulheres que na época da ditadura militar foram presas por 15 vezes. A Léa Campos foi presa 15 vezes porque queria arbitrar. Na história e hoje a gente tem alguma dificuldade, imagina naquela época que foi logo o início da arbitragem feminina? Se tratando da mulher em si a gente sabe que sempre vai ouvir alguma coisa. Isso não deveria ser normal, mas a gente sempre ouve que você vai ter dificuldade. São coisas que servem de motivação para que a gente dê cada vez mais o nosso melhor.

AjuNews: Durante as partidas você tem um posicionamento mais rígido. Em sua opinião, você sempre precisa impor uma presença mais dura para controlar o jogo por ser mulher do que se fosse um homem? Dentro da sua profissão você sente que existe diferença entre árbitros e árbitras?
Thayslane de Melo: Realmente, a liderança dentro do campo de jogo requer de nós mulheres árbitras uma postura mais firme. A gente também tem um lado positivo, os homens, jogadores no contexto geral, eles respeitam muito as mulheres, a tomada de decisão, acho que também essa questão de imposição. Você se impor enquanto líder, enquanto árbitra e também ter um critério nas tomadas de decisões é fundamental para que se consolide a presença de uma árbitra na tomada da decisão. Sobre a questão de gênero, eu acho que nós mulheres enquanto tentam desbravar algumas funções que têm uma tendência sociocultural de ter mais homens, a gente tenta de maneira igualitária ter oportunidade, acho que parte disso, não é por conta de gênero, se é homem ou mulher atuando, mas a gente almeja que seja de maneira igualitária e tenha o peso de forma igual de uma mulher apitando como um homem também. A gente sabe que, infelizmente, por questões socioculturais ainda tem um tabu muito grande, então, essas barreiras a gente tenta minimizar diariamente. Infelizmente, a gente tem que também lidar com essa situação fisiológica, a mulher tem uma tendência fisiológica de ter alguns entraves hormonais. O que seriam esses entraves hormonais? O ganho de força, velocidade, potência, que o homem tem uma diferenciação por conta da produção de testosterona, mas que a gente tem buscado cada vez mais alcançar os índices masculinos, isso é notório, tanto no cenário estadual, quanto no cenário nacional. Nós temos um dos exemplos de inspiração que é a Edna, hoje a Edna ela faz juntamente conosco as avaliações masculinas e foi uma das pioneiras a quebrar esse paradigma. A gente busca, esse é um dos fatores primordiais na arbitragem feminina, no cenário do futebol moderno masculino, é acompanhar realmente essa dinâmica fisiológica no que diz respeito ao pilar físico. Eu costumo dizer que um bom controle de jogo, uma boa dinâmica de critérios, das infrações do campo de jogo, saber lidar, fazer uma leitura de jogo, ter uma boa compreensão de jogo, entender futebol acima de tudo, faz com que a gente consiga ter o jogo mais na nossa mão, um controle de jogo bacana, isso independe de gênero, isso é muito de como você se dedica aos pilares físico, técnico, social, eles estão de maneira integrada e a gente tem que buscar isso todos os dias, tentar melhorar, assistir jogos, acompanhar futebol, ver as características de jogadores, a característica das equipes, qual competição nós estamos, enfim, é um estudo bem profundo do que é futebol e do que é arbitragem para melhorar cada vez mais. Então, não tem cobrança maior do que a que nós fazemos diariamente, eu faço uma autoavaliação depois do jogo, vejo o que está positivo, o que precisa ser ajustado, o que pode ser melhorado enquanto equipe. É algo que a gente vai se cobrar, infelizmente, a gente está lidando com o futebol, o futebol tem seus torcedores, enfim, essa é a essência do futebol. Reclamações, questionamentos sempre vão existir, se não, não seria futebol, mas a gente tem uma tendência a se cobrar muito mesmo e tentar cada vez mais melhorar.

AjuNews: O que te fez escolher essa profissão?
Thayslane de Melo: A minha relação com a profissão tem uma ligação muito forte porque meu pai foi atleta de futebol. Ele foi goleiro, disputou estadual, então, desde da minha infância que eu vou aos campos e tenho essa ligação muito forte com o futebol. Na época que fazia educação física surgiu essa oportunidade de fazer o curso de arbitragem e aí foi onde tudo começou.

AjuNews: Durante a pandemia você recebeu algum tipo de auxílio? Como foi lidar com a paralisação dos jogos e uma incerteza em meio a pandemia?
Thayslane de Melo: Foi dado esse suporte, sim. A CBF teve essa preocupação de não só ter o pilar social desenvolvido com o apoio financeiro, mas com as atividades do pilar técnico e do pilar físico. Nós tivemos auxílio dos profissionais da CBF para que a gente desse continuidade a esse período tão difícil da pandemia.

AjuNews: Como é o retorno aos gramados em plena pandemia? Como todas as mudanças em relação aos protocolos e testagem a cada partida.
Thayslane de Melo: Graças a Deus eu tive a experiência de fazer o primeiro jogo pela CBF, foi entre Fortaleza e América do Rio Grande do Norte, pela Copa Nordeste. Para mim foi uma felicidade muito grande retornar aos campos, acaba dando aquela ansiedade por tanto tempo, foram 120 dias longe dos gramados. E, e a gente retornar, com o novo normal, vamos colocar assim, foi muito gratificante e acima de tudo a gente poder retornar e fazer tudo que a gente ama é muito bacana.

Com supervisão de Peu Moraes*



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