Entrevista


‘Queremos respeito por nossas pautas’, afirma primeira travesti conselheira de Serviço Social em Sergipe


Publicado 29 de janeiro de 2022 às 15:08     Por Larissa Barros Revisado por Peu Moraes     Foto Reprodução / Redes Sociais

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No dia 29 de janeiro é comemorado em todo o Brasil, o Dia da Visibilidade Trans, data importante para lembrar da luta das pessoas trans e travestis por políticas públicas e respeito. Apesar da data ser usada para lembrar que o país está inserido no ranking dos que mais mata transexuais, o dia não pode ser lembrado apenas por este índice.

Em entrevista ao AjuNews, a primeira conselheira Travesti da história do Conselho de Serviço Social de Sergipe (CRESS), Maria Eduarda Cruz, falou sobre a importância de comemorar o Dia da Visibilidade Trans.

“A gente sabe que na sociedade ainda temos as nossas pautas invisibilizadas. A gente sabe que está vivendo um cenário onde o conservadorismo é crescente, onde a gente tem um governo de direita e que cada vez, realmente, apaga nossas lutas e nossas necessidades. Então, o Dia da Visibilidade Trans é um dia de respiro realmente, com relação a dizer que estamos aqui”, disse.

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Para Eduarda, para que essa data não seja vista apenas como um marco contra a violência de gênero, é preciso respeitar as pessoas travestis e transexuais, além de haver novas políticas públicas que abarque essa população que ainda é estigmatizada na sociedade.

“Acho que falta um papel de autoconscientização das pessoas, para que tenham respeito pela população de travestis e transexuais, porque só assim a gente vai conseguir avançar. O Dia da Visibilidade Trans vem com esse compromisso de que dar visibilidade a trans tem que ser todos os dias e não só no dia 29 de Janeiro”, ressaltou.

Confira a entrevista completa.

AjuNews: Em sua avaliação, o que é ser Transexual e como foi a trajetória de construção da sua verdadeira identidade?

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Maria Eduarda: Ser travesti ou transexual para mim é você se identificar quanto mulher ou homem nessa sociedade. Independente do seu órgão sexual, independente da sua orientação sexual, independente do que as pessoas impõem quando a gente nasce. A gente sabe que existe todo um contexto histórico machista, criado e pensado muito mesmo antes da gente tomar conhecimento de certos aspectos da sociedade. Que encaminha nossos pais, avós e bisavós a terem essa binaridade, do que é masculino do que é feminina, e com relação a esses papéis de gênero também ponto do que ser um homem do que ser uma mulher. Ser transexual ou travesti é transcender justamente esses padrões impostos pela sociedade. A minha construção foi um pouco difícil, porque eu não tinha referência de pessoas trans. Minha família não sabia lidar com pessoas como eu. Então, a gente esbarra sempre na questão do preconceito e da negação da identidade de gênero. Eu tive que esperar até a minha adolescência, já passando para a fase adulta, para conseguir realmente de forma desordenada. Não tinha um acompanhamento quanto a utilização de hormônios. Então eu usei, muitas vezes de forma indiscriminada, e creio que muitas travestis e transexuais ainda continuam com essa prática. Aí a gente deixa esse Alerta, pois hoje existe ambulatório trans em Lagarto, para procurarem endócrinos e profissionais capacitados para estarem acompanhando esse processo de transição e de permanência de continuação da transexualidade com relação à utilização de hormônio. Então, eu sofri muito, principalmente na escola. Até a minha fase da faculdade também, porque na época não existia essa lei do nome social. Eu tive que muitas vezes bater de frente para que minha identidade de gênero fosse respeitada. Mas isso só me impulsionou para estar ocupando esse espaço que eu ocupo agora, que é Astra, que é conselheira do CRESS, também ser especialista em sexualidade de gênero na educação. Isso de certa forma, se transformou em força para conseguir galgar outros espaços e ter essa representatividade. É muito importante ser exemplo para outras pessoas trans também.

AjuNews: O que representa ser a primeira conselheira Travesti da história do Conselho de Serviço Social de Sergipe e como é sua participação?

Maria Eduarda: Para mim é uma imensa satisfação ser a primeira travesti do CRESS Sergipe. Isso dá forças e encoraja, para que outras meninas, meninos e pessoas trans vejam que é possível estar ocupando esses cargos de poder na sociedade. Poder estar levantando essas demandas. Isso demonstra também que esses espaços podem ser mais inclusivos, sensibilizados com várias causas das minorias. Inclusive, no próprio CRESS a gente tem as bandeiras de lutas, e uma delas é justamente a da classe LGBTQIA+, com fotos de pessoas travestis e transexuais. Então, para mim é realmente quebrar uma barreira, vencer um obstáculo, e cada vez mais fazer com que pessoas outras pessoas trans se aproximem dessa realidade, se sintam acolhidos e levantem as suas demandas nesses espaços de poder.

AjuNews: Como foi a receptividade da comunidade e da categoria quando você assumiu o cargo?

Maria Eduarda: Foi muito respeitoso por sinal. Fui muito bem acolhida. As pessoas querendo entender mais sobre toda essa diversidade humana, sobre essas questões de transexualidades, de pessoas não binárias. Isso foi muito importante, e logo me aproximou das questões de ética que a gente tem dentro do CRESS, de direitos humanos, e isso foi muito importante. A gente já realizou inclusive, outros trabalhos voltados não só a transexualidade, mas as outras siglas dessa sopa de letrinhas que é a LGBTQIA+. Inclusive no Dia de Combate à LGBTfobia, Dia do Orgulho LGBT. Também fizemos parceria com algumas ONGs assim como a Astra, para estar elaborando ações, justamente para estar vencendo preconceitos, quebrando paradigmas e aproximando a sociedade em geral, principalmente, os profissionais do serviço social.

AjuNews: Pegando o gancho de Lina no BBB, ela sofreu preconceito e chegou a ser chamada por pronomes masculinos em vários momentos. Qual a importância de respeitar a identidade de gênero? Você também já passou pela mesma situação? Qual foi a sua reação?

Maria Eduarda: A gente vê o quanto isso ainda é forte em nossa sociedade, essa questão do machismo e do desrespeito com relação a identidade de gênero. Nós ficamos pasmos e pasmas, ela mesmo tendo tatuado na testa ‘Ela’, por várias vezes ela tem sua identidade de gênero desrespeitada. Quando a gente traz isso para a vida real, a gente afasta esses homens e mulheres trans, as travestis e transexuais, dos espaços de saúde, da questão da segurança pública. Se tornando ainda mais um problema muito maior para a sociedade no geral. Quando uma classe não consegue avançar, toda a sociedade perde com relação a isso. Eu tenho vários exemplos de meninas estarem doentes e não vão se cuidar porque sabem que ao chegar na unidade de saúde não vão ter o seu nome muitas vezes respeitado, isso quando é o nome social. E mesmo quando são retificadas, não tem o respeito quanto aos pronomes, artigos e as formas de tratamento. Isso acaba virando um problema muito maior. Mesmo a gente tendo algumas leis que nos favorecem com relação a isso, inclusive portarias do Ministério da Saúde. Também é importante ressaltar que isso afasta muitas de nós da escola. A gente vê que a maioria dos travestis e transexuais não possuem o fundamental completo, justamente, porque não tem o nome social respeitado, nem a utilização dos banheiros de acordo com a sua identidade de gênero. É preciso várias vezes a gente repensar essas questões que a gente acha mínima, mas acaba virando um problema muito maior. Único e exclusivamente por causa do bom senso. Eu já passei por isso algumas vezes, em algumas situações. E isso [ a reação] vai muito de como a gente está no dia. Tem dias que a gente consegue ter, que é o que a gente sempre busca ter, que é o diálogo. Para que as pessoas compreendam que eu sou ela, não sou ele. Independente de qualquer vivência que a pessoa tenha com pessoas travestis e transexuais. Quando não, a gente às vezes tem que ser um pouco mais rígidas mesmo para a gente se impor nos espaços e ter a nossa identidade de gênero respeitada. Mas, a gente tem que avançar com relação a essas questões.

AjuNews: Você poderia explicar se há diferença entre ser transexual, mulher trans e ser travesti?

Maria Eduarda: Na verdade, ao meu ver não há diferença entre transexual, mulher trans e travesti. Por que a gente vem dessa questão de transcender a natureza que nos é imposta ao nascer. Então, não há diferença. O que na verdade há, é uma higienização da palavra travesti por conta de toda a carga de marginalização que esse termo carrega, por conta das décadas de 60 e 80, quando isso foi mais latente aqui no Brasil. Fica bem fácil da gente entender assim: quando a gente fala, Maria Eduarda é uma transexual, Maria Eduarda é uma mulher trans. Isso dá uma certa leveza na sonoridade ao falar. Mas quando a gente diz assim: Maria Eduarda é uma travesti, a gente já sente uma carga maior, mais marginalizada por conta de todo o contexto que essa palavra significa. Mas ao meu ver, não há uma diferenciação. Havia também uma grande questão por conta do significado da palavra travesti nos dicionários. Isso mais tarde foi até retificado com relação a essas questões, que travesti era um homem vestido de mulher. Hoje em dia, o próprio movimento já entende que não tem nada a ver. Eu me sinto uma mulher travesti por conta de resistência, de ser uma palavra de resistência, de outras que vieram antes de mim, que lutaram para que eu estivesse aqui hoje. Então, eu uso e gosto da palavra travesti, justamente, por conta dessa questão de ser uma palavra de luta, de resistência, histórica. No final das contas, ser uma mulher trans, uma travesti ou uma transexual, para mim dá no mesmo. A gente vê uma diferenciação com relação aos homens trans. Os homens trans não tem uma palavra no feminino, a exemplo de travesti. Só existem homens trans ou a transmasculinidade, que também são coisas que se complementam.

AjuNews: Sendo o Brasil um dos países que mais mata transexuais em todo o mundo, qual a importância de comemorar o Dia da Visibilidade Trans?

Maria Eduarda: É importante comemorar o Dia da Visibilidade Trans porque a gente sabe que na sociedade ainda temos as nossas pautas invisibilizadas. A gente sabe que está vivendo um cenário onde o conservadorismo é crescente, onde a gente tem um governo de direita e que cada vez, realmente, apaga nossas lutas e nossas necessidades. Então, o Dia da Visibilidade Trans é um dia de respiro realmente, para dizer que estamos aqui, precisamos de políticas públicas para nossa população. A gente não pode continuar ocupando esse ranking de país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Porque isso depõe contra as nossas leis, depõe contra quem nós somos. E que sociedade é essa que a gente vem nutrindo, que não consegue respeitar a diversidade humana e a identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais essa a reflexão que o dia da visibilidade trans traz. Também, a importância e o dever dos governantes cada vez mais nos incluir em políticas públicas na área da saúde, da segurança, na assistência. Para que a gente sinta isso de forma interseccional, e se sinta à vontade de estar utilizando todos os espaços. Então, o dia da visibilidade trans é o dia de reforçar esse compromisso e o dia de levantar a bandeira de luta com relação a todas essas violências, seja mental, corporal, que a população trans sofre todos os dias

AjuNews: Em sua opinião, o que é preciso para fazer que o Dia da Visibilidade Trans não seja visto apenas como um marco contra a violência de gênero?

Maria Eduarda: Na minha opinião, o que é preciso para que o dia da visibilidade trans não seja visto apenas como marco contra a violência de gênero é efetivar de fato as poucas leis que temos para respeitar as pessoas travestis e transexuais, a criação de novas políticas públicas para estarem abarcando essa população que ainda é tão estigmatizada na sociedade. E também, acho que falta um papel de autoconscientização das pessoas, para que tenham respeito pela população de travestis e transexuais, porque só assim a gente vai conseguir avançar. O Dia da Visibilidade Trans vem com esse compromisso de que dar visibilidade a trans tem que ser todos os dias e não só no dia 29 de Janeiro. O que a gente quer é justamente isso, que as pessoas tenham respeito por nossas pautas, por nossa população. E que justamente nesses espaços de conselhos, de conferências, nesses âmbitos educacionais, de segurança, de saúde, de assistência, tenham mais vozes para estar garantindo a nossa sobrevivência e permanência na sociedade em geral. A gente usa justamente esses termos, e traz essas questões, para que as pessoas se sintam empoderadas e a vontade para estar vivendo em sociedade. Então, eu creio que para a gente continuar avançando, para que isso não seja só um marco contra a violência, que a gente consiga estar garantindo as políticas públicas e também todas as leis e os deveres que a sociedade em geral tem que ter com as minorias.

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