Entrevista


“Uma travesti só vai estar na capa de um jornal se for um caso de polícia”, critica Isis Broken


Publicado 06 de dezembro de 2020 às 09:31     Por Roberta Cesar     Foto Arquivo Pessoal

Bruxa trava cangaceira, neta de repentista e cantora. Com nove indicações nacionais e internacionais, a cantora sergipana e travesti, Isis Broken, avaliou durante entrevista ao AjuNews que por muito tempo viveu um isolamento social da mídia local.

“Um isolamento social de cotas trans sempre existiu, mas eu também vivi um isolamento da própria mídia aracajuana, sergipana. De não mostrar as minhas glórias, porque são glórias travestis. Uma travesti ela só vai estar na capa de um jornal se for um caso de polícia, nunca vai ser sobre o caso de uma glória. A mídia agora está começando a falar das minhas glórias, mas porque eu precisei de uma assessoria de comunicação para isso”, disse a artista do clipe “O Clã”, eleito Melhor Videoclipe Nacional.

Recentemente, Isis denunciou a Fundação de Cultura e Arte Aperipê (Funcap) por “transfobia institucionalizada” após seu nome social não aparecer na divulgação dos três editais da Lei Aldir Blanc.

“Foram extremamente transfóbicos e rudes também e não quiseram mudar o nome. […] Eles fizeram uma nota de esclarecimento e colocaram duas vezes o nome de batismo publicamente no Instagram deles e ainda dizendo que eu tinha faltado com a verdade. […] Todo mundo percebeu sim que eles são transfóbicos e que eles queriam me afetar de alguma forma e aí veio a público a transfobia institucionalizada da Funcap”, relembrou.

Durante conversa com a reportagem, a artista também comentou sobre o projeto de lei proposto pelo deputado estadual Rodrigo Valadares (PTB) que proíbe o uso da linguagem neutra em escolas e repartições públicas de Sergipe, entre outros assuntos. Leia a íntegra abaixo:

AjuNews: Conta para a gente um pouco da sua história para quem ainda não conhece o seu trabalho.
Isis Broken: Bom, para quem não me conhece, me chamo Isis Broken. Sou travesti, bruxa cangaceira, neta de repentista, bisneta de coiteiro de Lampião, do Bando de Lampião, cantora, rapper, atriz, performer. Já trabalhei também como diretora de fotografia em teatro, no espetáculo de Billie Holiday, “A Canção”, escrito por Hunald Alencar, protagonizado por Tânia Maria. Cantei em grandes palcos aqui em Sergipe, fui uma grande estrela no Festival de Artes de São Cristóvão (FASC) de 2019. Cantei todos os dias do FASC. Na sexta, eu cantei com Burundanga, no sábado, eu cantei com Naurêa, no domingo, foi o meu show. Então, assim foi extremamente revolucionário, incrível, lindo cantar ao lado de nomes nacionais e internacionais também, muito gigante aquele festival. Também já cantei na parada LGBT de Sergipe. Tenho grandes palcos, grandes públicos carregando comigo nessa minha pequena trajetória porque eu só tenho dois anos de carreira e esse ano agora foi um ano sabático. Não teve lançamento, não teve show, não teve nada por conta da pandemia. Então, é basicamente um ano de carreira e já no meu primeiro ano de carreira fui premiada Music Video Festival, na categoria melhor figurino e videoclipe nacional, concorrendo com Criolo, Orias, Teto Preto. São assim super influências na minha música, inclusive, até canto nos meus shows. Para mim foi assim muito revolucionário, tenho um ano de carreira e já ganhar um prêmio assim tão importante no meu primeiro videoclipe. O meu segundo videoclipe, o “Capeta Gasolina”, a gente já lançou ele sendo premiado, ele já era premiado antes de lançar. A gente ganhou o melhor videoclipe sergipano antes mesmo de lançar no Festival Internacional de Cinema de Itabaiana. A gente tem umas boas glórias. Nasci em Aracaju, cresci no Alto Sertão sergipano, de Carira, Nossa Senhora da Glória, que é a capital do Sertão.

AjuNews: Recentemente, você acusou a Fundação de Cultura e Arte Aperipê (Funcap) de “transfobia institucionalizada” e registrou uma denúncia. Explica um pouco do que aconteceu. Como está sendo para você lidar com o caso? Você recebeu os pedidos de desculpas da entidade?
Isis Broken: Esse episódio da Funcap é um episódio bem tenso porque eu passei no edital da Lei Aldir Blanc, que é por direito dos artistas sergipanos e nacionais também. E aí, eu passei em um edital de 80 nomes cisgêneros, em oitavo lugar como a única cota trans daquele edital. Na hora de mostrar os contemplados do edital, estava lá o nome de batismo da gata aqui. E aí o que foi que eu fiz. Entrei em contato com eles, mandei mensagem para eles a noite inteira, eles estavam vendo tudo e não me respondiam. Pedi para que eles tirassem o nome de batismo e colocassem meu nome social e eles não me atendiam, não me respondiam, nem nada. Quando foi na manhã seguinte, eles me mandaram “bom dia, qual foi o nome que você se inscreveu?”. Eles não tiveram nem a decência de falar “vamos lá, vamos mudar”. Por mais que eu estive errada, que não é o caso, eles não teriam que me falar isso, eles teriam que falar “vamos lá, vamos mudar isso, Isis”, “nós somos um órgão de Cultura” Acho que é o mínimo eles fazerem isso e eles não fizeram. Eu falei “eu estou com prova aqui de tudo, que eu coloquei meu nome social, sim”. Pronto, não me responderam mais. Minha produtora, Ana Paula, diretora do Museu da Gente Sergipana, ligou para eles de morrer, eles não atenderam. E quando uma terceira pessoa ligou, uma pessoa que não tem ligação com o meu trabalho, mas que é uma grande produtora cultural aqui de Sergipe ligou para eles e eles atenderam na mesma hora. Foram extremamente transfóbicos e rudes também e não quiseram mudar o nome. E eu falei, bom, se eles não querem contato comigo eu acho que eu deveria expor isso na internet. Fiz a carta à Funcap sobre a transfobia institucionalizada, pedi para que as pessoas assinassem, quando a carta atingiu 100 assinaturas eu publiquei ela nas redes sociais. A carta já está com 900 assinaturas. Tiveram artistas nacionais que vieram me dar apoio. Nossa, sei nem quantos mil artistas vieram me dar apoio nessa publicação. E o que acontece? Eles foram lá e fizeram uma nota de esclarecimento. Eu sou uma travesti preta e eu acho que como um órgão de cultura eles deveriam saber que esclarecimento é uma palavra de cunho racista. Eles fizeram uma nota de esclarecimento e colocaram duas vezes o nome de batismo publicamente no Instagram deles e ainda dizendo que eu tinha faltado com a verdade. Foi outro reboliço porque não teve um comentário naquela publicação deles, que eles tiraram do ar, um comentário positivo. Todo mundo percebeu sim que eles são transfóbicos e que eles queriam me afetar de alguma forma. Aí veio a público a transfobia institucionalizada da Funcap. Prestei a queixa crime e agora está seguindo em Justiça. Eles estão abrindo um inquérito policial e aí vamos ver o que vai dar. Espero que os diretores e organizadores de cultura do Estado aprendam que transfobia é crime, inclusive, é crime de racismo, e é inafiançável.

AjuNews: Sergipe tem um estilo musical predominante, que é arrocha, sertanejo, por exemplo. Como é a questão da visibilidade tanto do estilo musical quanto a representatividade LGBTQIA+ aqui no Estado?
Isis Broken: Eu vejo que o Estado tem uma potência de mostrar rap, de mostrar outras vertentes, o dub, que está presente no meu trabalho, o pop, que é algo que também não muito produzido aqui em Sergipe. Mas o rap eu venho como um grande nome aqui no Estado com premiações nacionais, internacionais, levando o rap do Estado para fora do país, mostrando que Sergipe também pode ter rap, também pode ter representantes à frente desse gênero musical, que é predominante de homens héteros. Nenhum macho hétero dessa cidade tem metade dos prêmios que eu tenho, mas será que eu tenho a visibilidade que esses machos héteros têm, por exemplo? Que está passando na televisão, que os clipes estão passando na televisão? Então, é muito disso, por que? Por que eu sou travesti? É porque eu não estou chegando nesses espaços por conta da minha cota trans? É algo que a gente tem que questionar e o público também tem que questionar nesses meios de comunicação. Por muito tempo eu estive vivendo um isolamento também. Um isolamento social de cotas trans sempre existiu, mas eu também vivi um isolamento da própria mídia aracajuana, sergipana. De não mostrar as minhas glórias porque são glórias travestis. Uma travesti ela só vai estar na capa de um jornal se for um caso de polícia, nunca vai ser sobre o caso de uma glória. A mídia agora está começando a falar das minhas glórias, mas porque eu precisei de uma assessoria de comunicação para isso. E a representatividade LGBTQIA+, sou a maior artista LGBT do Estado, tenho esse legado que ninguém pode negar. Mas também não quero ficar sozinha, eu quero levantar outras gatas, outros gatos também, outros artistas. Também não quero ficar sozinha como uma voz solitária sempre, parece que eu sou sempre a única artista LGBT que alguém vai chamar, que alguém vai falar, sendo que têm outros artistas, outras artistas tão incríveis aqui no estado que merecem também um play, uma visualização. Espero que a gente consiga mudar um pouco essas estruturas tão solidificadas desses gêneros musicais que são tão machistas, que são tão racistas. É bem difícil a gente ver um cantor sertanejo preto, então, eu acho que é meio por esse caminho.

AjuNews: Nos últimos dias, o deputado estadual Rodrigo Valadares protocolou um projeto de lei para garantir o uso do português tradicional e a proibição do uso da linguagem neutra em escolas e repartições públicas de Sergipe. Qual sua opinião sobre o assunto?
Isis Broken: Que bizarro! Não estava sabendo disso, não. Achei bizarro agora sabendo desta informação, mas achei muito bizarro porque tanta coisa para a gente se preocupar, tanta coisa importante acontecendo em Sergipe e uma pessoa está preocupada com isso. Falta do que fazer. Espero que as pessoas saibam votar melhor agora. Entendam que o voto é algo extremamente revolucionário e importante para que a gente não coloque esses lacaios no poder para estarem fazendo escrotices como essa. Acho que essa linguagem neutra ela nunca foi usada. Tem travesti sendo negada em um edital do Governo, imagine em uma escola… Bizarro, nem estava sabendo disso. Nossa! Que falta do que fazer, acho que é isso, falta do que fazer.

AjuNews: Dentro da sua trajetória qual música você considera que marcou sua carreira até aqui? Quais as novidades você está preparando? Vem música nova ou CD por ai?
Isis Broken: Com certeza “O Clã”, que foi minha primeira música de trabalho, foi uma música que me abriu muito as portas tanto aqui no estado como fora do estado, fora do Brasil também. Com meu primeiro videoclipe do “O Clã” que eu também ganhei repercussão nacional, foi uma música muito forte, muito poderosa. É uma música que fala sobre política, a bruxaria, na verdade, é só uma alegoria. Eu escrevi essa música no processo de impeachment de Dilma, por isso, eu falo na música “a rainha vai surgir, dois de espadas iludir” é justamente sobre essa troca de ilusão, desse golpe institucionalizado que a gente teve, que repercutiu muito maior que a gente imaginava que ia repercutir, a gente acabou colocando um fascista na presidência. Isso foi em decorrência de tudo isso, desse golpe que foi instaurado no país. É uma música que eu não posso deixar de cantar literalmente. Nos meus shows, é a música que todo mundo canta, aquela música que tem um coro bem alto, que todo mundo canta. É uma música muito forte que também fala sobre corpas trans no Nordeste, sobre essa coisa de você ser transfóbico, de você ser homofóbico e de mostrar essa força, que a gente tem força e vai passar por cima disso sim, vai passar por cima dessa galera. Vem música nova ou CD por aí? Vem os dois. Agora, no início do ano de 2021, está vindo música nova, “Ararinha da Viola”. Está vindo clipe também. Então, é uma música que eu escrevi para o meu avô, com o nome artístico do meu avô que era repentista Ararinha da Viola e é uma música que eu conto a minha trajetória de vida e a trajetória de vida da minha família. Sobre esse êxodo da saída do Alto Sertão e vindo para Aracaju que na música fala “trouxemos as pirâmides para Aracaju”. E é muito sobre essa vivência travesti então faço sempre analogia com coisas que eu vivi na minha infância, na minha adolescência. Essa questão da travestilidade e do Rio São Francisco, por exemplo. Eu falo “eu sou como o Rio São Francisco, eu nasci para resistir”, falo também sobre esse arquétipo do cabra macho, que a gente vive sobre este arquétipo do cabra macho aqui no Nordeste. É uma música que tem uma representatividade muito forte, é uma música muito potente, vai sair com clipe também, os figurinos estão icônicos, as locações também icônicas, não posso falar para não estragar a surpresa. Vai ser em dois lugares extremamente icônicos daqui, em Aracaju e no Alto Sertão. Se preparem para um videoclipe muito poderoso. E vem o CD sim. Consegui passar no edital do Governo, no edital da Lei Aldir Blanc, então, a bruxa cangaceira está vindo agora no primeiro semestre. Vamos fazer o lançamento no dia do meu aniversário, 5 de junho. Podem se preparar para um álbum com muita travestilidade, com muita potência, com um rap incrível, com trap, com pop. Vai ser lindo, incrível. Esperem para um dos melhores álbuns de rap já feitos aqui no Nordeste e vai ser por uma travesti, que tem muito para falar e que tem muito para mostrar ainda.

AjuNews: Qual o momento em sua carreira que mais te emocionou?
Isis Broken: Tiveram dois momentos assim muito lindos. O primeiro foi no FASC. Eu até me arrepio falando porque eu entrei no palco cantando “O Clã” e vi aquela praça lotada e todo mundo cantando comigo “bruxas tem seu próprio clã”, foi tão lindo, tão incrível aquele show. Eu tenho certeza que quem assistiu aquele show, quem viu saiu de alma lavada porque foi muito potente, muito lindo. As trocas de figurino, as músicas, a gente teve todo esse cuidado, a nossa big band incrível. Então foi um momento muito lindo, muito icônico. E um mês depois do FASC que foi a premiação do MVF, que eu fui para São Paulo receber lá no Museu de Imagem e Som de São Paulo o prêmio de melhor figurino e videoclipe nacional. Para mim foi lindo demais. Uma travesti, preta, nordestina, sergipana, colocando Sergipe nesse grande circuito de prêmios. Concorrendo com artistas que eu amo. E depois que terminou a premiação, os artistas vinham “ah eu adoro seu clipe”, “eu já vi seu clipe”, “você é muito poderosa”. O Thiago Pethit é um dos artistas que eu amo muito da MPB e ele me disse coisas lindas, falando que eu ia ser muito gigante, que eu tinha muito para acrescentar para a música brasileira. Foram dois momentos lindíssimos da minha carreira e que eu vou levar sempre, carregar sempre no meu coração.

AjuNews: “O Clã” foi eleito o melhor videoclipe nacional. Conta um pouco sobre a sua carreira no cenário nacional e internacional.
Isis Broken: Pois é. Eu nem acredito. O Festival de Cinema de Vitória, que é um Festival de Cinema importantíssimo aqui no país, que já tem 27 edições. Não é qualquer prêmio. Para mim foi muito lindo, muito icônico, realmente não esperava ganhar porque tinha outros artistas que eu também sou louca, fãzona, e eu falei “não é possível que eu vou ganhar o melhor videoclipe do país não, não pode ser”. E quando eu recebi a notícia eu fiquei muito em choque, não sabia se eu ria, não sabia se eu chorava, não sabia se eu gritava. Porque a gente espera que o nosso trabalho seja reconhecido, mas melhor videoclipe do país? É muito surreal ganhar o melhor videoclipe do país. Você saber que o seu videoclipe foi eleito o melhor videoclipe do país sabe, isso é muito revolucionário e principalmente para mim que sou uma artista sergipana, que não tenho grana nenhuma, matando cachorro a grito para fazer as coisas, para trabalhar nisso. Eu lembro que a gente realmente não tinha grana nenhuma, aliás não tem, mas no clipe do Clã, eu tinha uma câmera que eu ganhei quando tinha uns 15 anos, minha família se juntou uma grana e comprou uma câmera para mim, ai eu tive que vender essa câmera para pagar o aluguel do steadicam do clipe do Clã. Então é uma coisa que eu até me emociono quando falo porque é sobre isso, corpas trans tem que está sempre fazendo grandes sacrifícios para ter alguma coisa aqui nesse Estado, para ser reconhecida não só aqui, mas também fora. Então foi muito recompensador porque foi muito trabalho, foi muita energia colocada ali naquele clipe para a gente entregar o melhor trabalho possível. A gente chegou no cenário nacional em um ano de carreira, então, é extremamente revolucionário a gente chegou no cenário internacional. Meu clipe foi reproduzido no Museu de Viena, na Itália, no meio de obras Renascentistas. Meu clipe também passou em salas de cinema em Londres. Extremamente revolucionário também dominar esses espaços, uma corpa trans está dominando esses espaços. A gente também pensa em uma turnê quando acabar a pandemia na Europa, aqui no Brasil também. Mas a gente está muito focado nessa turnê da Europa também, pensando, projetando, imaginando coisas porque a Europa é um continente que ouve muito a gente. Então, eu acho que a gente tem essa potência lá, tem fãs meus que pedem muito um show em Paris. Vamos ver o que pode rolar daqui para frente. Preciso muito de fomento, preciso muito de grana para continuar o meu trabalho. Então, gente, por favor, quem quiser patrocinar a gata, estou aqui. Muito revolucionário está ganhando esses espaços nacionais e internacionais.

Com supervisão de Peu Moraes*



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