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Juíza induz criança vítima de estupro a desistir de aborto em Santa Catarina


Publicado 20 de junho de 2022 às 17:30     Por Quesia Cerqueira     Foto Reprodução / Solon Soares/Assembleia Legislativa de Santa Catarina

A Justiça de Santa Catarina decidiu manter uma criança de 11 anos, vítima de estupro, em um abrigo há mais de um mês para evitar que seja feito um aborto legal. A juíza Joana Ribeiro Zimmer, titular da Comarca de Tijucas, afirmou que a decisão era para proteger a vítima do abusador. O caso foi publicado nesta segunda-feira (20), pelo site The Intercept.

De acordo com a reportagem, a mãe da vítima descobriu a gravidez quando ela tinha 10 anos. Dois dias após a descoberta da gravidez, a menina foi levada pela mãe ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, o HU, ligado à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, para realizar o procedimento. 

A menina está entrando na 29ª semana de gravidez. Uma gestação saudável leva, em média, 40 semanas. Segundo laudos da equipe médica anexados ao processo, devido a pouca idade, a criança corre risco a cada semana que é obrigada a prosseguir com a gestação. 

O Código Penal permite a realização do aborto em casos de violência sexual, sem impor qualquer limitação de semanas da gravidez e sem exigir autorização judicial. No entanto, a equipe médica do HU se recusou a realizar o procedimento, que pelas normas do hospital só é permitido até a 20ª semana de gestação, no entanto, a menina já estava com 22 semanas e dois dias. Foi então que o caso chegou à juíza Joana Ribeiro Zimmer.

A juíza afirmou, em despacho de 1º de junho, que a ida ao abrigo foi ordenada inicialmente para proteger a criança do agressor, mas agora havia outro motivo. “O fato é que, doravante, o risco é que a mãe efetue algum procedimento para operar a morte do bebê”.

Na autorização da medida protetiva, a juíza compara a proteção da saúde da menina à proteção do feto. “Situação que deve ser avaliada como forma não só de protegê-la, mas de proteger o bebê em gestação, se houver viabilidade de vida extrauterina”, escreve. “Os riscos são inerentes à uma gestação nesta idade e não há, até o momento, risco de morte materna”, ela escreveu, repetindo a avaliação que consta em um laudo médico do hospital emitido em 5 de maio.

A menina foi levada a um abrigo longe da família para evitar que fosse feito um aborto sem consentimento da justiça. Em 9 de maio, durante audiência judicial em que a vítima, sua família e sua defensora foram ouvidas pela juíza e pela promotora, todos se comprometeram a tomar medidas para evitar novos abusos. 

A psicóloga Thais Micheli Setti, funcionária da prefeitura de Tijucas – uma cidade localizada entre Balneário Camboriú e Florianópolis, no litoral catarinense –, acompanha a menina. Após atendê-la em 10 de maio, registrou que a criança mostrou que não entende o que está acontecendo. “Apresentou e expressou medo e cansaço por conta da quantidade de consultas médicas e questionamentos, além do expresso desejo de voltar para casa com a mãe. Relatou estar se sentindo muito triste por estar longe de casa e que não consegue entender o porquê de não poder voltar para o seu lar”, diz o laudo.

A juíza Joana Ribeiro Zimmer, titular da Comarca de Tijucas, propôs junto com a promotora que a menina mantenha a gravidez por mais “uma ou duas semanas”, para aumentar a chance de sobrevida do feto. “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, questiona a juíza.

Ribeiro ainda afirmou erroneamente na audiência que, se fosse realizado o aborto, o bebê nasceria e seria preciso esperar ele morrer. Sem mencionar à menina o direito previsto em lei, a juíza afirma que o aborto não poderia ser realizado. “A questão jurídica do que é aborto pelo Ministério da Saúde é até as 22 semanas. Passado esse prazo, não seria mais aborto, pois haveria viabilidade à vida”, diz a juíza.

Com o fato de a mãe e a menina reiterarem o desejo de fazer o aborto aumentou a resistência da juíza em tirar a menina do abrigo. “A situação é clara: há o risco para o bebê em gestação, como bem acentuou o curador nomeado para o bebê em gestação, e há o risco de violência psicológica com a menina”, argumentou Ribeiro em um despacho de 1º de junho.

A juíza afirmou que, após nova visita ao hospital, a criança foi convencida a mudar o que tinha dito em juízo – apesar de a menina ter deixado claro no início da audiência que não gostaria de seguir com a gravidez.

Juíza menciona definição da OMS – mas a própria organização recomenda que leis e regulamentações não devem proibir o aborto com base na idade gestacional.

Ouvida durante a audiência de 23 de maio, a psicóloga Amanda Kliemann, que atendeu a menina no HU, mostrou preocupação com a forma que a saúde mental da criança estava sendo abordada na justiça – o laudo psicológico e os de outros profissionais sustentam o desejo da menina de interromper a gestação.

Uma decisão autorizou em 3 de junho que a menina e a mãe ficassem em um abrigo para vítimas de violência. Somente na última sexta-feira (17), que mãe e filha conseguiram ficar juntas em um abrigo.

Sobre as Diretrizes de Atenção ao Aborto 

Em 8 de março deste ano, a Organização Mundial de Saúde, a OMS, publicou o documento Abortion Care Guideline – em português, Diretrizes de Atenção ao Aborto –, que atualiza as recomendações para protocolos de abortamento. O órgão enfatiza que os limites gestacionais não são baseados em evidências científicas e estão associados ao aumento das taxas de mortalidade materna e a maus resultados de saúde. “Embora os métodos de aborto possam variar de acordo com a idade gestacional, a gravidez pode ser interrompida com segurança, independentemente da idade gestacional”, diz o documento.

Para respaldar o argumento de que a proteção da vida do feto é equiparável ao direito da criança de acessar o aborto legal, a juíza Joana Ribeiro citou a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, de que o Brasil faz parte. Ele dispõe, em seu artigo 4º, que os estados devem proteger o direito à vida “pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, responsável por interpretar o pacto, se manifestou no caso Artavia Murillo vs. Costa Rica, de 2012, que tratava de fertilização in vitro. Concluiu-se que um direito absoluto de vida pré-natal seria contrário à proteção dos direitos humanos, porque significaria que o direito à vida do feto teria um valor superior ao do direito à vida da pessoa nascida e gestante.

Desde 2016, o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher denuncia que a gravidez infantil forçada é um tratamento cruel e degradante, equivalente à tortura. “O estado retarda o dever legal de prestar o serviço de saúde, a ponto que não haja mais tempo para o aborto, obrigando crianças a serem mães. Mesmo que ela doe, ela vai ter parido”, argumentou a advogada Sandra Lia Bazzo. “E aí vem a tortura, porque esse foi um ato que ela não procurou, que está sendo imposto ilegalmente a ela e que vai ter repercussão para o resto da vida, nos casos em que elas [as meninas grávidas] sobrevivem”.

Fonte: The Intercept



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